Reflexão sobre as relações locatícias no Projeto de Lei 1179/2020

Casa residencial com contrato de locação assinado

Nos últimos dias, em decorrência do avanço da pandemia e a determinação de quarentena em algumas regiões do País, levantou-se uma série de questionamentos sobre a situação econômica que se instalaria.

Visando minimizar os impactos econômicos diversas medidas foram adotadas, dentre as quais o Projeto de Lei (PL) nº 1179/2020 de autoria do Senador Antonio Anastasia visando regulamentar as relações imobiliárias.

Inicialmente o projeto previa:

CAPÍTULO VI – Das Locações de Imóveis Urbanos

Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59 da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 31 de dezembro de 2020.

§ 1° O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020.

§ 2° É assegurado o direito de retomada do imóvel nas hipóteses previstas no art. 47, incisos I, II, III e IV da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, não se aplicando a tais hipóteses as restrições do caput.

Art. 10. Os locatários residenciais que sofrerem alteração econômico-financeira, decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração, poderão suspender, total ou parcialmente, o pagamento dos alugueres vencíveis a partir de 20 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020.

§ 1° Na hipótese de exercício da suspensão do pagamento de que trata o caput, os alugueres vencidos deverão ser pagos parceladamente, a partir de 30 de outubro de 2020, na data do vencimento, somando-se à prestação dos alugueres vincendos o percentual mensal de 20% dos alugueres vencidos.

§ 2° Os locatários deverão comunicar aos locadores o exercício da suspensão previsto no caput.

§ 3º A comunicação prevista no § 2º poderá ser realizada por qualquer ato que possa ser objeto de prova lícita.

Apenas dois artigos que, apesar de integrar apenas um projeto de lei, foi suficiente para causar grande alvoroço.

A imprensa noticiou a possibilidade de não pagamentos dos alugueis, advogados surgiram defendendo as mais diversas possibilidades, inquilinos passaram a solicitar a suspensão ou redução do valor da locação.

Durante o seu curso no Senado Federal o projeto sofreu diversas críticas e sugestões de alteração, sendo aprovado um texto substitutivo em 06/04/2020. Agora o projeto seguirá para votação na Câmara das Deputados.

No que diz respeito as relações locatícias, objeto do presente texto, as alterações ao projeto de lei, foram: alteração parcial do artigo 9º e exclusão total do artigo 10º.

Em primeiro lugar, importa esclarecer que o fundamento do Projeto de Lei é, o que denominamos no meio jurídico, de teoria da imprevisão, que, em linhas gerais estabelece a possibilidade de revisão de contratos que se prolongam no tempo quando ocorrerem situações extraordinárias e imprevistas. Notadamente, essa revisão não é automática e depende de uma decisão judicial reconhecendo a existência do “extraordinário e imprevisto”.

Visando preservar as relações locatícias, mas com foco nas locações residenciais, foi que se apresentou o projeto de lei[1].

Todavia, ao proteger apenas as locações residências o Projeto de Lei deixava de observar o equilíbrio das relações, sendo essa a primeira grande crítica.

Seguindo na análise do projeto inicial, verifica-se que há um cunho protecionista como se os proprietários de imóveis fossem a parte mais forte economicamente, em prejuízo dos locatários. Porém, tal fato não corresponde à realidade do mercado.

Isso porque, segundo uma pesquisa realizada junto ao SECOVI, verificou-se que 80% (oitenta por cento) dos locadores de imóveis residenciais possuem apenas 2 ou 3 imóveis que servem para complemento de renda ou plano de aposentadoria.

Neste cenário, a suspensão dos pagamentos dos alugueis geraria grande desproporção das relações, prejudicando os locadores duplamente, enquanto nem todos os locatários foram (ou serão) afetados financeiramente pela pandemia; sendo esta a segunda crítica apresentada à lei.

De mais a mais, o projeto não esclarece como ficariam os pagamentos dos encargos da locação, como taxas de condomínio e IPTU, silencio este que poderia aumentar ainda mais os prejuízos do locador que, além de não receber os alugueis, teria que arcar com estes custos.

Importa salientar ainda que a ausência total dos pagamentos de alugueis causaria grave problema às administradoras de imóveis, uma vez que estas recebem um percentual do valor locatício, ou seja, também perderiam seus rendimentos.

Um terceiro ponto que nos chama atenção no Projeto de Lei relaciona-se à ausência de quaisquer requisitos para suspender ou reduzir os alugueis, bastando a simples comunicação pelo locatário ao locador para que exercitasse o direito, o que poderia estimular um inadimplemento indevido.

Por sua vez o artigo 9º previa, em seu texto original, a impossibilidade de liminares de despejo apenas nos casos de não pagamento dos alugueis, mantendo, no entanto, as demais hipóteses (por exemplo, para moradia própria); o que se mostrava adequado e seguia as decisões judiciais proferidas até o momento, visando preservar o distanciamento social necessários para conter o avanço da pandemia.

Contudo o texto aprovado no Senado alterou sua redação, excluindo toda e qualquer possibilidade de liminar em ações de despejo, o que pode causar alguns problemas na execução de casa a caso.

Resumidamente, em que pese a boa intenção do projeto de lei neste momento de crise é importe ter a cautela necessária para na tentativa de amenizar um problema não criarmos outro maior.

O direito nunca deve ser analisado como algo isolado, mas como um conjunto sistêmico, com importantes reflexos nas relações do dia a dia e, de certo modo, na economia. Especialmente quando se fala em relações imobiliárias devemos ter em mente que normas excessivamente protetoras aos locatários podem acarretar uma sensível redução na oferta dos imóveis  e, por consequência, aumento no preço da locação, ou seja, por via obliqua, ao tentar proteger a parte supostamente vulnerável da relação, podemos prejudica-la ainda mais.

Notadamente locador nenhum deseja ter seu contrato rescindido, zelando sempre pela manutenção do contrato, motivo pelo qual, em meu ponto de vista, deve-se deixar que cada caso seja analisado e negociado entre as partes envolvidas, em conformidade com a realidade do caso concreto.

De todo modo, acompanharemos a votação do projeto de lei na Câmara com os possíveis ajustes que terá até a sanção presidencial.


[1] Justificação apresentada pelo senador ao apresentar o projeto de lei:

(..) A inspiração para este projeto, a qual compartilhamos com o Min. Dias Toffoli, o Min. Antonio Carlos Ferreira e o Professor Otavio Rodrigues, foi a célebre Lei Faillot, de 21 de janeiro de 1918, que foi apresentada pelo deputado que lhe deu nome. A Lei Faillot criou regras excepcionais para a aplicação da teoria da imprevisão no Direito francês.

Hoje, tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor, possuem regras adequadas para resolver ou revisar contratos por imprevisão, no primeiro caso, e onerosidade excessiva, no segundo diploma. É preciso agora conter os excessos em nome da ocorrência do caso fortuito e da força maior, mas também permitir que segmentos vulneráveis como os locatários urbanos não sofram restrições ao direito à moradia.

O projeto de lei chega, assim, a um adequado equilíbrio de posições em áreas extremamente complexas e de difícil ponderação entre interesses. Diante do exposto, conclamamos os nobres Pares a aderirem à aprovação desta proposição com a maior celeridade possível.

Integra: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8081779&ts=1586292093706&disposition=inline